quarta-feira, 29 de julho de 2009

Livro das Sombras, caderno de receitas ou ambos?

Estava pensando ainda no tema sobre os livros de receitas. No mesmo instante lembrei dos nossos B.O.S. (Book of Shadows - Livro das Sombras) que toda bruxa tem orgulho em ter um. Não tão sofisticado e bonito quanto os famosos livros de receitas das livrarias, mas fazemos de tudo prá caprichar na capa, no colorido e na letra quando escrevemos nossos encantamentos, rituais ou qualquer outra coisa. Eles são secretos porque só dizem respeito à nós bruxas e bruxos ou aos grupos, denominados covens. São diários contendo nossos melhores esforços de colocar em prática tudo que aprendemos durante nossa caminhada sacerdotal, nossos erros e acertos mágicos, nossa leitura pessoal do mundo, das pessoas e quiçá dos deuses. Devem ser guardados com todo carinho e respeito e passados através das gerações dentre as Tradições Pagãs, como fonte de consulta e aprendizado. Quando reflito sobre essa e outras finalidades do B.O.S., imediatamente o associo com os livros de receitas de nossas mães, avós ou tias que são passados através dos tempos dentre as gerações, como se cada ingrediente, cada receita fosse tão mágica quanto qualquer encantamento de uma bruxa. É como se cada núcleo familiar, na sua maioria feminino, fosse dententor de mistérios culinários que envolvem rituais, magia e muito sabor. Não há como negar que a grande maioria das moçoilas recebem num determinado momento da vida, algumas receitas de família, ou na forma de um rito de passagem silencioso ou até mesmo porque elaboram seu próprio caderno de receitas. Comigo foi um misto das duas coisas. Quando tinha vinte e poucos anos ganhei de presente da mãe de uma amiga, a Leila, um caderno que ela iniciara com muitas receitas de doces e salgados. Na maioria essas receitas faziam parte do seu repertório familiar e outras foram adquiridas pelo tempo, através das amigas. Gostei muito da idéia. Tratava-se de um livro de capa dura, recheado de fotos recortadas de revistas, com imagens que davam água na boca. A iniciativa da amiga Leila propiciou que eu continuasse a preencher aquelas inúmeras páginas em branco, num exercício de completar aquele caderno com as receitas que foram elaboradas e realizadas pela minha mãe. Não era pouca coisa. Minha mãe nunca foi uma glutona, mas sempre decidiu que comer bem era essencial em nossa casa. Para ela, com pouquíssima informação sobre a diferença de um alimento protéico ou apenas calórico, o essencial era estarmos satisfeitos frente à mesa farta em nossa casa. Até hoje, ela acredita que estar saudável e alimentado só depois da sobremesa ou uma imensa barra de chocolate. "Alimento é aquele que traz alegria, prazer e com certeza, engorda. Gente magra não pode ter força suficiente para a vida". Essa sempre foi e ainda é, a filosofia culinária predominante da Dona Glorinha. Há muitas mães assim e muitos filhos, assim como eu, que se beneficiaram com esse postulado gastronômico, sem conhecer o triste resultado disso tudo. Eu, só agora que passei dos quarenta que compreendi a necessidade da reeducação alimentar e no pensar sobre a comida de forma diferente, buscando saúde e prazer. A cada novo prato que ela elaborava era como se estivesse fazendo um carinho em mim e no meu pai, seus fiéis escudeiros na hora da mesa. É como se entre nós três, fosse gerada uma cumplicidade através do paladar. Ela fazia de tudo para aliar seu conhecimento da cozinha da juventude em Minas Gerais, com o que as amigas ou as revistas ensinavam. A novidade era sempre mais prazeirosa prá ela. Quando dava certo e era aprovada por mim e por meu pai, tornava-se tradição e definitivamente incorporava o seu caderno de receitas. Quando eu fui selecionar as receitas para o meu caderno não tinha noção da quantidade de material que eu tinha disponível na minha memória. O creme branco com suspiro em cima, o bolo de sorvete, o tradicional pudim de leite, o manjar branco, o velho bolo de cenouras e tantas outras delícias que ela fazia. Juntei algumas receitas novas que hoje, já são tradicionais prá mim também. Voltando a pensar na minha mãe, fico imaginando que padrões ela buscava quando manipulava uma fórmula alquímica e culinária naquelas páginas. O que ela tentava transformar nela mesma ou em nós? Por que ela tinha tanta necessidade de manipular mais o açúcar em detrimento dos pratos salgados? Que valores culinários ela trazia da sua mãe, avó ou família em geral? Imaginei que investigar essas questões seria um delicioso exercício para uma bruxa ou qualquer outra pessoa, envolta nos prazeres da magia e da mesa. O quanto podemos descobrir sobre nossos antepassados, sua cultura culinária até chegarmos aos nososs dias. Por isso associo o velho e bom livro de receitas de família com o B.O.S. das feiticeiras. A magia dos sabores em receitas que foram aferidas atentamente por mãos que traziam mais que ingredientes: carregavam afeto e a melhor parte delas, que era expressa em bolos, tortas, pudins ou até mesmo numa simples refeição. Não importa a sofisticação e sim o empenho com que essas mulheres, bruxas ou não, sempre usaram da magia culinária prá nos amar.

Dona Glorinha, minha mãe.
Foto: Aglaia Madora

Imagens: www.google.com/images

Nenhum comentário: